quinta-feira, 25 de novembro de 2010

6.5 A Mulher nas Origens Cristãs

No início do cristianismo, Fiorenza identificou dois movimentos: o movimento de renovação iniciado por Jesus na Palestina em ambiente judaico e o movimento messiânico cristão primitivo iniciado antes de Paulo em ambiente helenista, tendo como centro a cosmopolita Antioquia. Ambos chamavam a um “discípulato de iguais” e reuniam “comunidades de iguais”, “comunidades inclusivas”, onde eram até privilegiados os excluídos da sociedade (mulheres inclusive): eram os movimentos igualitários. No movimento missionário cristão primitivo também as mulheres desempenhavam um papel de missionárias e de guias das comunidades, como aparece em Rm 16, 1-16, onde Febe é chamada diákonos; Prisca, synergós (colaboradora); e Júnias, apóstolos.
Pertenceria ao movimento cristão primitivo o texto de Gl 3,28 (Não há mais judeu, nem grego; não há mais nem escravo, nem homem livre; não há mais nem homem nem mulher; todos vós, realmente, sois um só em Cristo Jesus”), que a teologia feminista faz valer, por sua visão de igualdade, totalidade e liberdade, como “a magna charta do feminismo cristão”. A análise crítica leva a sustentar que Gl 3,26-28 é uma confissão batismal pré-paulina que Paulo cita para indicar a nova realidade da fé frente à lei: “Gl 3,28 não é uma ‘formulação de ponta’ paulina, ou uma posição avançado própria de Paulo, ou uma afirmação ocasional isolada de Paulo, que permaneceria como que submersa por outras passagens subordinacionistas Gl 3,28 é uma expressão-chave, não da teologia paulina, mas da auto-compreensão teológica do movimento missionário cristão que teve um impacto histórico de vasto alcance”. Mas, enquanto a exegese tradicional geralmente interpreta Gl 3,28 em sentido espiritualista como igualdade da alma do homem e da mulher diante de Deus, ou em sentido futurista como afirmação de igualdade do homem e da mulher na nova criação escatológica, a teologia feminista sublinham o caráter “performativo” (Wayne Meeks) da antiga afirmação batismal: “Já é tempo — escrevem Jurgen e Elisabeth Moltmann — que estas palavras sejam traduzidas em ação na Igreja e na sociedade. A mensagem relações de domínio. Na nova comunidade, em que o batismo insere a pessoa, não vigora a estrutura do matrimônio patriarcal, que subordina a mulher ao homem; o bimordismo sexual não se torna dimorfismo sexual; todos são membros da mesma família de Deus como irmãos e irmãs. Por esta visão e por esta prática, as primeiras comunidades cristãs se apresentam como “comunidades alternativas” no meio do mundo greco-romano, comunidades que por sua visão e prática de igualdade entravam em conflito com uma sociedade estruturada por privilégios e discriminações.
Mas na reconstrução de Fiorenza a conduta de Paulo se apresenta ambígua: de um lado, afirma a igualdade e a liberdade; de outro, estabelece limites à participação das mulheres nas assembléias cristãs, como aparece particularmente em 1 Cor 11,1-16; 14, 34-35. Fica assim aberta a porta a ulteriores desenvolvimentos em sentido patriarcal. Na carta aos Colossenses e aos Efésios assiste-se à introdução, através do código familiar da ordem patriarcal nas famílias cristãs com a submissão das mulheres ao maridos (Ef 5,21-33); nas cartas Pastorais a ordem patriarcal é introduzida na própria estrutura da comunidade cristã e do ministério (I Tm 2,9-15). O “discipulato de iguais” é assim progressivamente espiritualizado e restrito à alma. Ainda não é uma prática geral, como testemunham o evangelho de Marcos (contemporâneo da Carta aos Colossenses) e o Evangelho de João (contemporâneo das Pastorais), que sublinham o serviço e o amor como centro do mistério de Jesus e como exigência principal do discipulato, mas será a linha patriarcal, e não aquela igualitária — a mais antiga e originária que pode apelar para a práxis do movimento de Jesus e do primeiro movimento missionário — que se afirmará e terá êxito definitivo no século IV. “E contudo este ‘êxito’ não pode ser justificado teologicamente, porque não pode apelar para a autoridade de Jesus na sua própria práxis cristã”.

7. A HERMENÊUTICA BÍBLICA FEMINISTA

A hermenêutica bíblica feminista comporta um trabalho múltiplo, que exige se dê atenção:
a) aos textos patriarcais, onde o influxo patriarcal chega até ao conteúdo das afirmações teológicas; a própria teologia do matrimônio em Ef 5,21-23 ´´e expressa em termos de subordinação da mulher ao homem;
b) à interpretação patriarcal dos textos dada pela tradição eclesiástica;
c) à história da transmissão do texto e das suas traduções; é sabido — para dar apenas um exemplo — que em Rm 16,7 Paulo saúda como “apóstolos” Andronico e Júnias; mas, a partir do século XIV edições e traduções grafaram Júnios em vez de Júnias, porque não viam como o Novo Testamento podia dar a uma mulher o nome de apóstolos.

CONCLUSÃO

A hermenêutica bíblica feminista apresenta dois modelos hermenêuticos: o primeiro identifica um núcleo ou mensagem de libertação, que é preciso separar do revestimento histórico patriarcal do texto e retomar para torná-lo operante na prática atual; o segundo, vê em ação nos escritos do Novo Testamento um lento e progressivo processo de patriarcalização das estruturas da comunidade: trata-se, então, através de uma hermenêutica crítica, de redescobrir o estrato mais antigo e de tomar contato com a teologia e com a prática das primeiras comunidades cristãs para corrigir sucessivas distorções na teoria e na prática, para reconstituir um elo de igualdade na comunidade.         

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