segunda-feira, 29 de novembro de 2010

INTRODUÇÃO AO FEMINISMO

Feminismo é um tema, uma questão, um movimento político, um pensamento filosófico protagonizado pelas mulheres que inquieta o mundo há mais de 200 anos.

A palavra feminismo é de origem francesa feminisme, cujo primeiro registro escrito e conhecido data de 1837, na França. O termo feminista, por sua vez, é relativo ao feminismo. É também de origem francesa,  féministe, e o seu primeiro registro escrito e conhecido data de 1872. 

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) nos oferece algumas formulações para explicar o significado do termo feminismo, dentre elas as seguintes:

·         Feminismo é a doutrina que preconiza o aprimoramento e a ampliação do papel e dos direitos das mulheres na sociedade.
·         Feminismo é o movimento que milita neste sentido.
·         Feminismo é a teoria que sustenta a igualdade política, social e econômica de ambos os sexos.
·         Feminismo é a atividade organizada em favor dos direitos e interesses das mulheres.

Estamos de acordo com Houaiss de que o feminismo tem todas essas características. Porém, desejamos chamar a atenção para uma marca fundamental do feminismo que foi omitida pelo dicionário e que faz toda a diferença: o sujeito do feminismo, o sujeito da promoção da igualdade entre os sexos, são as mulheres. Essa omissão reduz o significado social, político e histórico que o feminismo tem hoje e teve no passado, pois invisibiliza a autoria das mulheres, fazendo subsumir a sua condição de pensadoras de sua liberdade. Isto porque, diante de uma sociedade predominantemente masculina, como a brasileira, tal omissão é, praticamente, um ato de nomeação dos homens como sujeito dessa doutrina, desse movimento, dessa teoria. Essa forma de negar o protagonismo das mulheres, utilizada pelas autoridades do saber, fica melhor evidenciada quando lemos as formulações, trazidas pelo mesmo dicionário, para esclarecer o significado dos termos liberalismo e marxismo. Para esses se nomeiam Locke, e Marx e Engels como sujeitos da criação das doutrinas liberal e marxista, respectivamente. Sim, o feminismo constitui a luta política e ideológica instaurada pelas mulheres em favor de uma sociedade justa e igualitária. Devemos fazer questão da nossa autoria. 

Feminismo é a ação política das mulheres em favor da transformação das relações de poder entre homens e mulheres, que incide na transformação da sociedade, através do combate às desigualdades, discriminações, opressões e explorações de sexo, com contribuições, teóricas e práticas, nos campos da organização política, das leis, dos hábitos e costumes, dos saberes e dos governos.


Por ser uma ação política, o feminismo não é neutro e, ao propor a emancipação política, econômica e social das mulheres, ele declara a desconstrução do patriarcado, como luta fundamental para se alcançar uma sociedade justa. Esclarece, assim, que o lugar das mulheres nessa luta é o de sujeito do pensamento e da ação. Isto afeta a vida de homens e mulheres, pois, ao reservar a estas lugares de decisão sobre o seu próprio destino, atinge todas as relações sociais.

Assim, ao reconhecer no patriarcado a força antagônica à emancipação das mulheres, o feminismo reivindicou a abolição dos privilégios jurídicos, econômicos, sociais e políticos dos homens em relação às mulheres e, por via de conseqüência, a construção de novos direitos, comportamentos e relações entre os sexos na vida pública e na vida privada. 


Baseada na identificação da diferença biológica entre os sexos, a filosofia ocidental justificou, desde sempre, a opressão e exploração das mulheres a partir de um falso princípio, qual seja, o de que as mulheres seriam humanamente inferiores aos homens, portanto incapazes de ter acesso aos mesmos lugares que esses na sociedade. O patriarcado alimenta, então, as religiões, em sua passionalidade, e, também, as ciências, em sua neutralidade, oferecendo sempre as mesmas explicações sobre o lugar e o ser das mulheres na sociedade. Dessa maneira, durante milhares de anos foram sendo reproduzidos argumentos, dogmas e leis que fragilizaram os seus corpos e reprimiram o seu intelecto, reservando-lhes, ainda hoje, na maioria das sociedades, desvantagens econômicas, amorosas e políticas.

Por tudo o que sabemos sobre as mulheres, nos diversos períodos da história, esse processo não foi isento de resistência, por parte daqueles seres ditos “inferiores”, nem da prática de grandes e pequenas violências, cotidianas, cometidas, legal ou ilegalmente, pelos seres ditos “superiores”. Sim, o patriarcado é a força cultural antagônica à emancipação das mulheres, que se expressa sob diversas formas,
antecedendo historicamente ao modo de produção
capitalista, mantendo-se neste e reproduzindo-se 
nas sociedades socialistas. E o feminismo é a
expressão mais radical daquela resistência.

O fato de seu foco ser a desconstrução do patriarcado; e ter como sujeito político as mulheres e como objetivo a transformação das relações de poder entre os sexos, não pode ser entendido como sendo mostra de um movimento dissociado da tarefa de transformação geral da sociedade. Muito pelo contrário, o que precisa ser entendido definitivamente é que o enfrentamento das desigualdades entre mulheres e homens é indispensável à construção de uma sociedade justa e igualitária e, ainda, que a     existência do feminismo é esclarecedora de que a tarefa de transformação da sociedade, não pode ser:

·         reduzida a uma única luta;
·         hierarquizada em lutas e categorias principais e secundárias;
·         negadora da autonomia organizacional e política dos  sujeitos constituídos em torno de causas que identificam como fundamentais para o combate à sua opressão.

O foco da ação feminista significa garantir o direito das mulheres à autonomia política, desmantelando um dos pilares fundamentais da cultura de opressão, que se constitui na sujeição das mulheres ao pensamento do outro, ao interesse do outro e à ação do outro.  O feminismo reconhece que a sua luta, embora seja indispensável, não basta à construção de uma nova sociedade. Assim, participar de forma ativa e solidária de todas as lutas libertárias, vivenciando as conexões que existem entre essas e a pluralidade das mulheres, assim como guardar a sua própria autonomia e respeitar a dos outros movimentos, não é uma simples compreensão do feminismo, mas ponto basilar de sua práxis democrática. Nisso consiste a sua radicalidade e a da própria democracia. Querer submeter o feminismo à luta de classe ou às lutas étnico-raciais, por exemplo, em nome de um futuro ou de uma suposta prioridade de tal ou qual opressão, destrói a força da pluralidade necessária à transformação da sociedade, além de fortalecer o paradigma patriarcal que impregnou as revoluções do século XX de que as questões trazidas pelas mulheres seriam menores e específicas.

Marcando Pontos da Construção Feminista

Na passagem do século XX para o XXI, o feminismo pôde reconhecer o resultado de todo o seu labor histórico contra o patriarcado: firmava-se o consenso crítico entre as correntes de pensamento de que a identidade-referencial de ser humano da cultura ocidental excluía a grande maioria dos seres humanos, pois estava referida apenas numa minoria: o homem-dono-branco-europeu-adulto-heterossexual. As mulheres, os despossuídos, as outras raças e etnias, as outras idades e as outras expressões de sexualidade, seriam apenas não-homens, não-sujeitos, não-brancos, não-europeus, não-adultos e não-normais. Na visão feminista, tal construção, fundada na perspectiva patriarcal de organização humana, significara justamente a supressão da individuação, da identidade, da autonomia, enfim da existência do sujeito referida numa vida concreta que se materializa a partir de um corpo que sente, age e pensa de forma própria a Natureza e os seres humanos.  A construção desse sujeito para as mulheres se anuncia com a emergência do feminismo enquanto sujeito coletivo de uma causa libertária. O estágio atual de desenvolvimento das mulheres, como sujeitos de suas próprias vidas, se caracteriza por sua inserção significativa nas atividades produtivas e intelectuais e por sua presença apenas simbólica nas esferas de decisão. 

A questão feminista – As desigualdades entre homens e mulheres - foi sendo formulada através da tomada de consciência das mulheres sobre a sua própria opressão e exploração, num embate com as idéias liberais e marxistas, durante toda a Modernidade. Se nos primórdios do feminismo denunciava-se a desigualdade de direitos entre homens e mulheres, no decorrer do tempo esclareceu-se a condição de subordinação das mulheres no conjunto das atividades da vida humana.

A dinâmica do fazer feminista – Outra característica importante do feminismo é não haver determinado à priori, ou seja, modelado as formas para conduzir os seus objetivos, ou a forma que assumiriam os seus resultados. Dessa maneira, a cada ganho das mulheres surgiam e surgem novas demandas, novos conhecimentos e novas formas de organização, produzindo, assim, a possibilidade concreta de inclusão de novos sujeitos, de transformação de suas próprias práticas e de inserção de seu pensamento em diferentes instâncias da vida em sociedade.
No campo dos valores, o feminismo vem se pautando por três parâmetros: a igualdade social entre os indivíduos, a autonomia dos sujeitos e a solidariedade entre os sujeitos.  É a partir da busca de realização desses valores, que o feminismo passou a re-significar Desigualdade, Diferença, Igualdade e Eqüidade, compreendendo que esses termos assumem significados políticos radicais ao estabelecerem múltiplas relações entre si. Assim, as desigualdades só podem ser enfrentadas se respeitadas as diferenças; e a igualdade só pode ser estabelecida se referida na eqüidade. Da mesma forma, as diferenças só serão respeitadas se desejada a igualdade, e as desigualdades abolidas se estabelecida a eqüidade. A diferença é o ponto fundamental dessas equações, pois ela não só se refere ao biológico, ao objetivo, mas a toda subjetividade humana, enquanto a eqüidade é o mecanismo para se relacionar com a subjetividade.

No campo da organização sociopolítica, o feminismo funciona refletindo o distanciamento das mulheres do lugar do autoritarismo, apresentando agrupamentos não hierárquicos, autônomos e com bom nível de relações solidárias com outros sujeitos, sem delegação de representação baseada na exclusão, com forte marca de ação em rede e grandes momentos de confluência de interesses. 

No campo do conhecimento, o feminismo apresenta uma produção dispersa em termos de autoras, porém concentrada em temas, por períodos, numa acumulação de achados, que tem influenciado rupturas epistemológicas significativas no campo das ciências sociais. A teoria feminista de gênero é exemplar neste campo, quando envolve, entre outras, a releitura da categoria patriarcado, a crítica às teorias marxista e freudiana, e a definição de novas categorias como divisão sexual do trabalho e indivisibilidade política-ideológica entre público e privado. Essas questões são melhor trabalhadas em um outro texto nosso, intitulado “O que é gênero?”.

É preciso compreender e utilizar, no sentido que diz Chico de Oliveira (1995, p.12),

A notável contribuição que o movimento feminista em suas formas próprias e várias, deu e continua dando à tomada de consciência do Estado sobre os seus deveres. É uma democratização que se dá ao nível do cotidiano e que, portanto, tem tudo para ser de uma radicalidade, numa sociedade tão desigual, que os mais otimistas não são capazes de suspeitar.

Partindo dessa declaração de reconhecimento, poderíamos dizer que essa contribuição “para tomada de consciência sobre seus deveres” não se limita ao nível do Estado, mas, penetra a sociedade civil organizada: movimentos sociais, partidos, sindicatos, ONG’s, etc. Contudo, as relações de poder entre homens e mulheres continuam cotidianamente muito duras, seja nos campos objetivos ou subjetivos da vida em sociedade, seja no interior do aparelho do Estado, ou de partidos, sindicatos e outras organizações mistas.  Dessa forma, é necessário não confundirmos conquistas, apenas formais, ou certas adesões masculinas, com transformação das relações de gênero. Essa clareza as mulheres não a adquirem apenas com a conquista de uma vida pública, mas no exercício de uma vida política dentro das instituições da democracia. O distanciamento do pensamento feminista e das feministas dos espaços de poder que regem as democracias representativas em nada contribui para transformação da divisão sexual do poder. A supervalorização de uma suposta competência técnica, recém-adquirida pelas mulheres, para resolver a pobreza combinada à ausência do feminismo nos espaços da decisão política é uma armadilha. É preciso estar atentas às resistências das relações patriarcais na contemporaneidade, e se posicionar no sentido de contribuir para que as mulheres dividam, hoje, com os homens os lugares de poder, e de afirmar o feminismo como pensamento ativo na reorganização do aparelho de Estado.

Resumo da História do Feminismo

Como já vimos, o termo feminismo vem sendo utilizado no ocidente a partir do século XIX, com registros, inclusive no Brasil, a exemplo da autora Nísia Floresta. Porém, a origem da ação política das mulheres, na perspectiva da transformação das relações de poder entre homens e mulheres, data já do século XVIII, sendo a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, escrita por Olympe de Gouges, em 1791, no âmbito da Revolução Francesa, a indicação mais convincente da existência dessa ação naquele período.

Observando-se o desenvolvimento histórico do feminismo nesses mais de duzentos anos, podemos identificar três grandes dinâmicas na sua trajetória política, para as quais adotaremos as nomenclaturas: Feminismo da Igualdade; Feminismo da Diferença; e Feminismo de Governo, buscando definí-las, também, a partir de uma certa divisão cronológica.

1o. Feminismo da Igualdade - Conquista de Direitos: entre fins do século XVIII e os anos de 1960

Nesse longo intervalo histórico, o feminismo concentrou esforços na denúncia das injustiças sociais cometidas contra as mulheres e na luta por conquista dos direitos da democracia liberal, referenciados nos direitos garantidos aos homens: direito à educação formal em todos os níveis; direito ao trabalho formal; direito à propriedade; direito ao voto. Também, muitos são os escritos de feministas que participaram durante o século XIX e começo do XX das revoluções e movimentos sociais como o das Sansimonistas[1], das mulheres da Comuna de Paris e da Revolução Russa, que atestam já naquele momento a exigência feminista da simultaneidade das lutas pela liberação de classe e sexo.

Nesse período, observamos que uma característica importante da ação feminista era o duplo foco: a ampliação da participação das mulheres na sociedade, a exemplo das militantes Sansimonistas[2]; e a inserção das mulheres na vida política, através de seu acesso aos lugares de governo no aparelho de Estado, cuja maior expressão é a luta Sufragista, com a sua reivindicação dos direitos da mulher de votar e ser eleita.

O Feminismo da Igualdade expressa a idéia de que o lugar de subalternidade das mulheres na sociedade era devido à educação que lhes era imposta. Contudo, existe nesse mesmo discurso contradições, uma vez que se buscava ressaltar que as mulheres seriam portadoras de predicados morais e afetivos naturais, biológicos, que lhes diferenciariam dos homens, os quais constituiriam a essência da mulher. Ou seja, o Feminismo da Igualdade ainda não consegue equacionar o binômio Natureza e Cultura, de forma a entender que o destino político, econômico e social de homens e mulheres na sociedade não se deve à presença de “qualidades” biológicas nos machos ou nas fêmeas da espécie humana, mas, sim, aos processos culturais de atribuir valores aos  indivíduos a partir da diferença de sexo. Ser mulher ou ser homem é uma construção social. Voltaremos a essa questão mais adiante, quando tratarmos do Feminismo da Diferença.

Os destaques nesse período são dois:
·         A luta por direitos políticos desde a Revolução Francesa e as manifestações sufragistas. A força das feministas nessa luta esteve em exigir coerência da filosofia política da igualdade, reivindicando a igualdade entre os sexos. Chamadas de burguesas, de defensoras do capitalismo, as sufragistas ainda hoje não ocupam o lugar de destaque que merecem na história das lutas feministas.

·         A exigência de simultaneidade das lutas para a conquista da emancipação de classe e sexo. Coincidindo com a trajetória de grandes enfrentamentos entre a esquerda e a direita, que se antagonizavam, sob o primado da luta de classes, o feminismo foi duramente reprimido por ambos os lados, até o seu total desbaratamento seja pelos regimes socialistas, seja pelo nazismo. Os fracassos dos totalitarismos, a desconfiança no determinismo histórico, as experiências realizadas pelas mulheres na segunda guerra mundial reabrem, a partir da década de 1960, as portas para o feminismo. Para um feminismo seguro de que o caminho para a liberação das mulheres não se reduzia à abolição das relações de produção capitalista e à incorporação das mulheres ao trabalho assalariado, nem às conquistas dos direitos das democracias liberais.
           
2o. Feminismo da Diferença – Conquista da Discussão sobre a Cultura: dos anos de 1960 a década de 1990.

Entre 1960 e 1990, quando os direitos das mulheres na maioria das sociedades ocidentais estavam reconhecidos formalmente, a ação feminista concentrou esforços na superação das desvantagens, decorrentes dos hábitos e costumes, com as quais as mulheres, mesmo na condição de titulares de direitos, continuavam a conviver.  Há, então, a possibilidade de aprofundamento da compreensão sobre a subjetividade das relações de gênero no próprio campo político, gerando uma discussão sempre mais intensa sobre Natureza e Cultura. Nesse processo, esclareceu-se, teoricamente, que além das diferenças entre homens e mulheres, existem diferenças entre as próprias mulheres, que conformam desigualdades e precisam ser tratadas. Estabeleceu-se, então, não só o direito a diferença, mas, fundamentalmente, a compreensão de que o respeito às diferenças constrói relações sociais mais condizentes com as necessidades dos seres humanos.

A idéia de que a diferença constitui o ser humano distingue esse período do anterior, no qual se acreditava que as mulheres eram todas iguais, pelo fato de partilharem o mesmo sexo. As formas de opressão das mulheres dependiam também de outras relações sociais. Assim, pertencer ao mesmo sexo não define a mesma condição de classe para todas as mulheres. Da mesma forma que compartilhar a mesma condição de classe ou pertencer à mesma raça não define o mesmo lugar na sociedade para homens e mulheres.  

A partir daí, as feministas constroem as suas formulações teóricas, demonstrando que as esferas públicas e privadas estão intrinsecamente relacionadas. Esclarece-se, também, que tanto as relações na esfera pública quanto as relações na esfera privada são relações sociais, construídas através de relações de poder. Consolida-se, então, o famoso slogan: “o privado é político”.

A contribuição do feminismo à compreensão da multiplicidade das mulheres e de que o biológico não determina habilidades, qualidades e defeitos, o leva a se firmar como uma das correntes do pensamento moderno, informando, então, que a discriminação das mulheres se reproduz através do cultivo de valores éticos e morais das sociedades patriarcais e falocêntricas.

São esses valores que continuam instituindo comportamentos diferenciados por sexo, para os indivíduos desde a mais tenra idade, formatando as suas relações nas esferas privada (amor, ódio, sexualidade, casamento, família, amizade, etc.) e pública (trabalho, política, construção do conhecimento, etc). O feminismo vai compreender, ainda, que são esses valores que trazem prejuízos à construção de relações de cooperação entre homens e mulheres para transformação da sociedade e que as revoluções e os governos, liberais ou socialistas, não são neutros diante das desigualdades de gênero.
A elaboração do conceito de gênero data dos últimos vinte anos. A sua difusão apresenta-se, então, como o resultado mais palpável do pensamento feminista, com reflexo sobre a base epistemológica da construção dos saberes, a ponto de influir na tomada de consciência sobre a ausência de neutralidade, também, nas produções científicas e históricas.

Existe hoje uma ampla literatura envolvendo o conceito de gênero gestada nos espaços acadêmicos, nas Ong’s feministas e não feministas, no âmbito da cooperação internacional e até do aparelho de Estado.

Em decorrência dos interesses e da missão de cada um desses atores coletivos, a interpretação do conceito de gênero e, conseqüentemente, o seu uso sofrem adaptações ideológicas que, em muitos casos, reduzem o seu conteúdo político e, a sua potencialidade para transformação das relações de poder, tal qual o sublinha Joan Scott (1995):

Gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, baseado nas diferenças percebidas entre os sexos. E gênero é a forma primeira de significar as relações de poder.   

Com exceção dos países escandinavos e, dentre eles, principalmente a Suécia, a ação feminista, no intervalo entre 1960 e 1990, se caracteriza, primeiro, por uma forte mobilização voltada para a ampliação da participação das mulheres nos movimentos sociais e, segundo, por uma significativa retração de investimentos em mecanismos dirigidos à ampliação da participação das mulheres nos espaços de decisão, ensejados pela democracia representativa. Ou seja, houve uma desaceleração dos esforços feministas no sentido de implementar os direitos políticos das mulheres nos espaços de poder resultantes dos processos eletivos.

Por um período que vai do final da segunda guerra, e, em muitos casos, até os nossos dias, essa retração está relacionada a toda a descrença que muitas das sociedades experimentaram e experimentam frente às limitações da democracia representativa nos moldes liberais em atender aos anseios de participação de amplas camadas da população, e uma crença profunda nas possibilidades da democracia participativa de garantir de forma efetiva tal participação. A combinação desses dois elementos levou e ainda leva o feminismo a identificar uma incompatibilidade entre representação e participação. Contribui para isso, também, uma certa culpa das feministas, diante da esquerda, por haver lutado ferozmente pelo direito das mulheres ao voto, ou seja, pelos direitos políticos no espaço das democracias burguesas, quando a palavra de ordem era revolução. Contudo, as frustrações com as formas autoritárias dos partidos de esquerda, dos sindicatos e das sociedades socialistas de construir a igualdade vão levar o feminismo a aprofundar a sua compreensão sobre a necessidade de autonomia das organizações de mulheres para combater o patriarcado.

No momento atual, acreditamos que o feminismo, em sua ação em favor da divisão do poder entre homens e mulheres nos espaços de governo, deverá aprofundar a análise de gênero sobre o sufragismo e a democracia representativa. Isto porque, os conhecimentos sobre essa matéria estão mais referidos nas perspectivas da revolução e da categoria classe, do que na perspectiva de gênero, o que impede uma visão crítica mais profunda.
Os destaques no período que caracterizamos como Feminismo da Diferença são:

·         A vivência dos grupos de reflexão concomitantes à sua própria ação, como base para a organização e desenvolvimento de uma teoria feminista.
·         A construção teórica sobre as diferenças e o afastamento da perspectiva essencialista quanto à natureza das mulheres.
·         A discussão sobre o espaço privado e o destino do corpo das mulheres (a família, o amor, a sexualidade), com a formulação dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos das mulheres.
·         A influência do feminismo na formação de um amplo movimento de mulheres, atingindo, com maior ou menor intensidade, todas as instituições da sociedade.
·         A denúncia sistemática da violência sexual e doméstica.
·         A formação de serviços especializados, para a promoção de uma educação alternativa para as mulheres, através do surgimento e fortalecimento das Ong’s feministas.
·         Formulação da teoria de gênero com influência sobre a produção acadêmica, e surgimento de grupos de trabalho especializados em gênero e condição feminina, nas universidades.
·         A construção de relações de cooperação mais equilibradas entre o feminismo e as organizações representantes das lutas de classe.
·         O enfrentamento da discussão entre as questões de raça/etnia e gênero, havendo uma aproximação do movimento feminista com o movimento de mulheres negras.
·         Crescimento da influência das propostas feministas de promoção da eqüidade de gênero nas políticas públicas, com a defesa da necessidade de adoção de políticas afirmativas de gênero, acelerando o processo de empoderamento das mulheres.
·         Constantes modificações das políticas de desenvolvimento até a incorporação da perspectiva de eqüidade de gênero.

À primeira vista parece que este período, tão mais curto, foi muito mais frutífero do que o anterior. No entanto, é preciso levar em conta que, no primeiro período, houve descontinuidade nas ações devido às guerras e revoluções, onde o uso do poder bélico (refletindo o falocentrismo) era valorizado como a forma mais rápida e eficaz de produzir transformações sociais. Acreditava-se, inclusive no campo progressista, que era preciso matar para fazer nascer. A posição das mulheres e do feminismo, na maioria dos casos, foi a favor da paz, antes mesmo de desencadeados os conflitos bélicos. Temos, ainda, que considerar que as possibilidades para aceleração do processo de emancipação das mulheres foram construídas a partir da conquista de direitos e da compreensão da necessidade de simultaneidade das lutas de emancipação de classe e sexo, o que se realizou através de processos, muitas vezes, de grande radicalidade, envolvendo oposições de diversas naturezas. 

3º. Feminismo de Governo – Conquista dos Espaços de Decisão: a partir dos anos de 1990.

No Brasil especificamente, duas iniciativas do movimento feminista constituem-se em divisor de águas, entre a fase anterior e o período que se abre a partir dos anos de 1990, o qual estamos chamando de Feminismo de Governo: de um lado, as propostas de constituição de órgãos especializados para a promoção da eqüidade de gênero, com autonomia financeira no interior do Aparelho de Estado; e de outro, a retomada de investimentos para a ampliação da participação das mulheres na democracia representativa, a exemplo das políticas de cotas, por sexo, para candidaturas ao parlamento.

Em ambos os casos, o sucesso dessas iniciativas está exposto a fortes pressões, próprias às sofridas pelas medidas voltadas às transformações das relações de poder. O controle do cumprimento da política de cotas pelos partidos, por exemplo, necessário ao seu fortalecimento, não é da competência de nenhum órgão governamental, do parlamento, do judiciário ou ministério público. Dessa forma, o Feminismo de Governo se caracteriza pela luta das mulheres para dividir com os homens os espaços de poder, de forma a participarem da reorganização do aparelho de Estado e da implantação e implementação de políticas públicas. Esse fenômeno se revela tanto pela busca feminista de criar estruturas especializadas e ocupar cargos dentro dessas estruturas, como, também, pela instabilidade institucional das mesmas, cuja existência e sobrevivência ainda se encontram na dependência de compromissos pontuais dos governantes, que na maioria dos casos não reconhecem como necessária à democracia, se constituir, na prática dos poderes, a igualdade entre homens e mulheres.  

Assim, o feminismo, ao se declarar democrata e ao propor a desconstrução das formas patriarcais de organização da sociedade, se confronta neste momento com a exigência de formular e implementar mecanismos capazes de promover o acesso das mulheres aos espaços de poder no âmbito das instituições da democracia representativa, forçando definitivamente a transformação das relações de poder entre mulheres e homens e a efetivação de políticas públicas inclusivas.

Não obstante as dificuldades e ambigüidades, a dinâmica impulsionada pelo movimento feminista está pondo em marcha, na atualidade, a aceleração do processo de empoderamento das mulheres no interior dos governos. Contudo, o Feminismo de Governo é um longo caminho que, para a maioria dos países, está apenas começando, e sobre o qual temos algumas poucas experiências a relatar tanto no campo das iniciativas recentes, como no da consolidação de resultados. 

Para indicar referências, chamamos a atenção, primeiro, para o caso mais avançado, a Suécia, onde as mulheres já são maioria nos parlamentos, estabeleceram paridade nos cargos executivos e construíram políticas públicas que garantem a mulheres e homens condições equânimes de vida. No caso da Suécia, inclusive, poderíamos dizer que se marcha para um feminismo de Estado. Ou seja, a alternância de governos na Suécia já acontece com base na igualdade entre mulheres e homens.