quinta-feira, 25 de novembro de 2010

6. INTERPRETAÇÃO NÃO SEXISTA DA BÍBLIA

A Bíblia ensina a submissão da mulher ao homem. Durante muito tempo as Igrejas a interpretaram em sentido desfavorável à mulher: “É chegada a hora para nós mulheres — exclamou entre rumorosos aplausos Mrs. Cutler na “Convenção Americana Para os Direitos da Mulher”, realizada em Filadélfia em 1854 — de ler e interpretar a Bíblia por nós mesmas”. Nasceria desta exigência um vasto projeto, já lembrado no início, de “A Bíblia da Mulher” (1895-1898). Os dois pressupostos dos quais partiam Elisabeth Cady Stanton e as suas colaboradoras — e que a teologia feminista ainda considera válidos — eram os seguintes: é necessária uma obra de revisão da interpretação bíblica tradicional, porque:
a) a Bíblia é usada como arma política contra a emancipação da mulher: a Bíblia é um livro político; e
b) este uso contra a mulher pode encontrar uma justificação no fato de que a própria Bíblia é um livro patriarcal.
É um campo de pesquisa que ainda hoje permanece muito ativo e que se move dentro do programa de Despatriarcalizar a Inrterpretação bíblica segundo a formulação da estudiosa feminista do Antigo Testamento Phillis Trible, ou de Interpretação não sexista da Bíblia segundo a formulação de Letty Russell.

6.1 Interpretação Patriarcal à Luz de Gênesis

O lugar clássico da interpretação patriarcal é Gênesis 2-3, enquanto o texto da fonte sacerdotal de Gênesis 1 reza: “homem e mulher os criou” (Gn 1:27), o texto da mais antiga fonte javista de Gênesis 2-3 contém o relato de Adão e Eva, segundo o qual a mulher é criada em segundo lugar  (Gn 2,18), formada por uma constela de Adão (Gn 2,22) e é a primeira a pecar levando o próprio Adão ao pecado (Gn 3,12-13). Enquanto o relato de Gênesis 1 afirma com sobriedade teológica a criaturalidade do homem e da mulher e a sua semelhança com Deus, no relato do Gênesis 2-3 é fácil deduzir a inferioridade ética da mulher: Eva criada em segundo lugar foi a primeira a pecar. Com referência ao texto de Gênesis 2, Theodor Relk escreveu em “Psicanálise da Bíblia”: “O relato bíblico do nascimento de Eva é a brincadeira mais pesada que os milênios dirigiram à mulher”.

6.2 Os Argumentos a Partir das Epístolas Paulinas

O epistolário paulino argumenta em várias ocasiões (I Co 11,1-16; 14,34-35; Ef 5,21-33; I Tm 2,9-15) a partir do relato das origens do Gênesis 2-3, afirmando a submissão da mulher ao homem. Impõe-se um preciso trabalho hermenêutico deste e de outros textos — os quais contribuem para configurar a Bíblia hebraico-cristã também como documento patriarcal — que é desenvolvido de maneira diversa por homens e mulheres biblistas.

6.3 A Interpretação Feminista da Bíblia

A teologia feminista exclui, dois tipos de interpretação bíblica, aparentados no método, mas contrapostos nos resultados, como são a interpretação antifeminista e a interpretação feminista pós-cristã. A interpretação bíblica antifeminista, por longo tempo praticada e que em parte ainda subsiste, assume os dados bíblicos relativos à mulher, que interpreta na linha da interpretação patrística e escolástica, chegando a afirmar a inferioridade, ou a submissão da mulher com relação ao homem. A interpretação bíblica feminista pós-cristã também parte de dados bíblicos, como foram lidos pela tradição eclesiástica, mas chega à conclusão de que a Bíblia, ensinando a subordinação-sujeição da mulher ao homem, é irremediavelmente patriarcal. Conclusões contrapostas — uma tradicional e outra pós-cristã — mas aparentadas no método fundamentalista de leitura da Bíblia, onde o texto é a mensagem.
A teologia feminista — na linha da mais esclarecida exegese bíblica — em geral distingue entre valor teológico e o modo da anunciação que é historicamente condicionado. Em particular, Letty Russell distingue entre a Tradição como parádosis, como ação dinâmica e libertadora de Deus na história, como Escritura, do veículo das tradições históricas, como “escrito” historicamente condicionado: “A Tradição não é um bloco de conteúdos a serem conservados acuradamente por parte de  hierarquias autorizadas, mas uma ação de Deus que deve ser transmitida aos outros de todo sexo e raça”. Rosemary Radford Ruether identifica na Bíblia a linha das tradições profético-messiânicas e as separa de outras tradições não utilizáveis. Em resumo, a tradição utilizável para o feminismo na Bíblia não são particulares afirmações sobre a libertação das mulheres, mas antes o modelo crítico do pensamento profético”. Phyllis Trible introduz a distinção entre fé bíblica e religião bíblica e mostra a presença de um “princípio despatriarcalizante em ação na Bíblia. Despatriarcalização não é uma operação que o exegeta realiza sobre o texto. É uma operação hermenêutica que age no interior da própria Bíblia. Nós expomos, nós não impomos”.

6.4 Crítica ao Modelo Interpretativo

A neo-testamentarista Elisabeth Schussler Fiorenza critica em seu vasto estudo in Memorian of Her (1983) esse modelo interpretativo que, as suas variantes, seria reconduzível a um “modelo neo-ortodoxo”, para o qual o texto não é a mensagem, mas apenas o continente da mensagem; a mensagem aparece, neste modelo hermenêutico, como uma espécie de essência a-histórica, como uma espécie de núcleo exprimivel em termos de libertação e separável do texto patriarcal. Enquanto para as feministas pós-cristãs (segunda e terceira corrente) texto e mensagem bíblicos são e permanecem patriarcais e portanto não mais utilizáveis, para as feministas que praticam na leitura da Bíblica o “modelo neo-ortodoxo”, só o texto é patriarcal, a mensagem é exprimível em termos de libertação. Fiorenza propõe, pelo contrário, uma “hermenêutica critica feminista”, que não parte de textos patriarcais para chegar a um núcleo essencial de libertação, a-histórico e separável, mas parte de textos patriarcais para chegar aos seus contextos históricos e sociais em vista de uma reconstrução teológica feminista das origens cristãs. Trata-se de introduzir um “novo paradigma” (Thomas Kuhn), que é chamado “hermenêutica crítica feminista” enquanto:
a) adota o método histórico-crítico na leitura dos textos;
b) mas, ao mesmo tempo, parte também das exigências da teologia feminista da libertação, enquanto quer praticar uma leitura militante da Bíblia, que recupere “a memória dela”.

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