quinta-feira, 25 de novembro de 2010

4. PERSPECTIVAS E CORRENTES DA TEOLOGIA FEMINISTA        

A teologia feminista não é um bloco unitário: nela é possível identificar uma diversidade de perspectivas e uma variedade de correntes, indicamos apenas três:

4.1 A primeira corrente

Situa-se explicitamente no interior da tradição biblico-cristã e das suas instituições e busca exercitar uma função profética frente à sociedade, mas também e sobretudo frente à Igreja. É a corrente básica da teologia feminista, que realiza plenamente a caracterização geral, que foi dada acima, e as caracterizações temáticas que serão dadas a seguir. Ela compreende, para citar os nomes e as obras mais importantes: nos Estados Unidos, Letty Russell, Rosemary Radford Ruether, Phyllis Tribel, Elizabeth Schussier Florenza, Nelle Morton, Anne Carr; e na Europa, Karl Elizabeth Borresen, Catharina Helkes, Elisabeth Moltmann-Wendel e Marga Buhrig.

4.2 A segunda corrente

Compreende mulheres, que não se situam mais na corrente da tradição bíblico-cristã, mas se movem num espaço aberto, pós-cristão, em busca de novos caminhos para fazer a experiência de transcendência. Enquanto na primeira corrente o discurso permanece um discurso cristão, na segunda corrente ainda se faz um discurso religioso, que não é mais, pelo menos prevalentemente, cristão. Aqui se colocam Mary Daly, a partir de Beyond God the Father (1973) e Peggy Ann Way, que teorizou “a autoridade da possibilidade”: “Estou contente por não encontrar mais nenhuma segurança na Bíblia, na história, nos mitos e nas estruturas. Estou contente com o meu modo atual de compreender, que fundamenta a autoridade do meu ofício nas possibilidades do futuro e numa fé na qual eu experimento tão profundamente que nenhuma criatura poderá separar-me do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 8:39), nem a Bíblia nem a história nem os mitos nem as estruturas ou a consciência masculina... Uma parte da autoridade do meu ofício está na possibilidade de libertar a Deus do abuso, que o liga a uma hermenêutica masculina, à história ou à estrutura gramatical”.
Quando a mulher decide abandonar o espaço da sociedade sexista e da Igreja patriarcal, ela experimenta uma vida nova, entra num espaço novo. Neste caminho as mulheres se unem numa liga, que Daly define como “Irmandade”, entendida geralmente como “o estar-junto” das mulheres num caminho de libertação. A irmandade é, antes de tudo, a “comunidade do êxodo” do espaço sexista, e por isso é uma liga “anti-mundo” , enquanto comporta o êxodo do velho mundo sexista; e, também, uma liga “anti-igreja”, enquanto comporta o abandono da Igreja, que é “a tumba das mulheres”. Mas a irmandade não é apenas, em sentido negativo, a comunidade de expatriadas e de exiladas espirituais; é também, de forma positiva, rede noosférica da libertação, comunidade da comunicação, aliança cósmica, enquanto exprime a chegada das mulheres a uma nova harmonia com o ser, com o próprio Eu, com o universo e com Deus como fonte energética do ser e da vida.

4.2.1 Crítica a contradição defendida por Daly

O teólogo americano John Cobb fez algumas observações críticas a Mary Daly que afirmou haver profunda contradição entre a lógica inerente ao feminismo radical e a lógica inerente ao sistema dos símbolos cristãos, a saber:
a) feminismo e cristianismo não são incompatíveis; o cristianismo é processo, é movimento e assim continua sendo; portanto, mantém a capacidade de corrigir-se e de renovar-se;
b) o movimento de libertação das mulheres nasceu num ambiente histórico fecundado pela tradição judaico-cristã: “Creio que o processo de protesto profético está inscrito no próprio coração da tradição”;
c) por fim, é difícil conservar a abertura à Transcendência, cortando completamente os pontos com a tradição religiosa, da qual se provém e sem o ancoradouro numa comunidade de fé.

4.3 A terceira corrente

Responde pelo nome de “religião de Deusa” ou de “espiritualidade da Deusa”. Se Simone de Beauvoir escreveu “O segundo Sexo” (1949), mais de vinte anos depois a escritora americana Elisabeth Gould-Davis escreveu “The First Sex” (1971) para sublinhar polemicamente que, se o sexo feminino é o segundo sexo, pode gloriar-se de ser, no plano da história das culturas, “o primeiro sexo”, na medida em que a cultura do matriarcado teria precedido a atual cultura do patriarcado. O livro de Gould-Davis é expressão da redescoberta da obra de Bachofen o historiador das culturas. Das Mutterrecht (1961), escrevendo sobre o direito materno e o matriarcado, onde se formula pela primeira vez a hipótese de uma ginocracia como estágio anterior à androcracia, ainda que na concepção evolucionista do historiador suiço a passagem do originário matriarcado para o posterior patriarcado assinale um progresso no plano cultural. Um grupo de feministas recupera a tese de Bachofen, afastando-se de sua concepção evolucionista e propõe a retomada de símbolos religiosos do matriarcado, como mais aptos a inspirar a espiritualidade da mulher. Nascendo desta forma a retomada do culto da Deusa. Segundo o estudo de Merlin Stone, When God Was a Woman (1976), o culto da Deusa sobreviveu até a era clássica da Grécia e de Roma, e foi totalmente supresso somente na época dos imperadores cristãos de Roma e de Bizâncio, que fecharam definitivamente os últimos templos da Deusa pelo ano de 500 d.C.  

5. A Busca Espiritual das Mulheres

Preocupada sobretudo com a busca espiritual das mulheres Carol Christ como se exprimiu no ensaio “Por Que as Mulheres Tem Necessidade da Deusa”: “O símbolo da deusa tem muito a oferecer às mulheres que lutam para liquidar aqueles estados de ânimo e aquelas motivações potentes, persuasivas e persistentes de desvalorização do poder feminino, de denegrição do corpo feminino, de desconfiança na vontade feminina, e de negação dos vínculos e do patrimônio cultural das mulheres, que foram gerados pela religião patriarcal. E visto que as mulheres estão lutando para criar uma cultura nova, na qual são celebrados o poder, os corpos, a vontade e os vínculos das mulheres, parece natural que volte à tona a Deusa como símbolo da renovada beleza, força e poder das mulheres”. Aqui são indicados claramente quatro motivos da volta da Deusa na nova espiritualidade feminista, e precisamente:
a) se os símbolos da religião patriarcal têm profundos efeitos psicológicos e políticos, e servem para confirmar o poder do homem, o símbolo da Deusa significa a afirmação do poder feminino como poder benéfico e criativo;
b) se a religião patriarcal denegriu as mulheres como mais carnais e mais ligadas aos ciclos da natureza em sua corporeidade, o símbolo da Deusa significa uma afirmação positiva e jubilosa do corpo feminino e dos seus ciclos;
c) se a religião patriarcal desvalorizou a vontade da mulher como passiva, remissiva e mais sugestionável ao mal, o símbolo da Deusa significa afirmação positiva da vontade feminina como energia que deve ser afirmada em harmonia com a energia e com a vontade dos outros seres;
d) além disso, o símbolo da Deusa serve para fortalecer os vínculos que intercorrem entre as mulheres e que se exprimem na irmandade.
A Deusa, aqui redescoberta, é vista por algumas feministas como divindade feminina que personifica o poder das mulheres, e que pode ser também invocada na oração e no ritual; mas, em geral, — como no texto citado de Carol Christ — é vista como símbolo do novo poder das mulheres; é o nome transcendente da reencontrada identidade no caminho da auto-transcendência.
Naomi Goldenberg que, na qualidade de psicanalista da escola de Jung, se interessa por examinar sonhos e fantasias das mulheres como fonte de revelação, julga que, quando as mulheres se revoltam e caem os símbolos religiosos patriarcais, acontece uma “mudança de deuses”: “Quando os Pais morrem, nós todas reencontramos em nosso interior”, e o símbolo da Deusa exprime uma religião “que traz força, a força divina ou sobrenatural, na pessoa”.
Inclui-se nessa corrente da “Golddess Religion”, mas com uma fisionomia própria, o movimento Wicca ou seja, da “bruxaria”, cujas principais representantes são Starhawk (pseudômino de Miriam Simos) e Zsuzsanna Budapest. A expressão Wicca deriva de uma antiga palavra inglesa Wicclan, que equivale a witchcraft, a “arte da bruxaria”, entendida como “arte das mulheres sábias e peritas”. Herdeiras da religião da Grande Mãe da época do matriarcado, as bruxas eram peritas na arte da medicina, conheciam os segredos das ervas e das poções, eram curandeiras e videntes. O movimento Wicca é a retomada desta “arte sábia” e dispõe de rituais — com meditação, exercícios de respiração, cânticos, danças, bênçãos e invocações à Deusa — orientados para o desenvolvimento da própria energia física, psíquica e emotiva e à busca de harmonia com os ritmos da natureza e com os outros seres. A propósito dos novos rituais feministas, escreve Zsuzsanna Budapest: “Os rituais (...) são uma forma de exorcizar o policial patriarcal que está em nós, de purificar a profundidade da mente e de enchê-la com imagens positivas da força e beleza das mulheres. Disto é símbolo a Deusa — do divino que existe nas mulheres e de tudo o que é feminino no universo”.
Com a segunda e a terceira corrente encontramo-nos, mais do que com a teologia feminista, com movimentos pós-cristãos de Espiritualidade Feminista, ainda que entre elas haja muitas diferenças. Frente a estes movimentos, a atitude da teologia feminista pode ser fixada assim:
a) antes de tudo, a teologia feminista utiliza análises e temas de reflexão, enquanto ela oferece uma linguagem e um imaginário elaborados na perspectiva da mulher onde estão em ação a sua capacidade de integração, seu senso da comunidade, sua proximidade com a natureza, e portanto sirvam para superar distorções patriarcais e para criar interdependência;
b) a teologia feminista, contudo, imputa a estas correntes da Espiritualidade Feminista de perderem o caráter de militância que caracteriza a teologia feminista como teologia da libertação, e de refugiar-se, romanticamente, nos espaços separados e intercomunicáveis do gino-centrismo, como acontece na filosofia do feminismo radical de Daly; ou, acriticamente, de voltar á cultura retro-datada do matriarcado e à religião da Deusa;
c) a teologia feminista, além disso, considera que não se pode saltar o espaço cristão; ela se situa, enquanto teologia, na linha profética da tradição cristã e pretende oferecer uma contribuição crítica para uma teologia de integralidade.
Para a teologia feminista, a irmandade não é “anti-Igreja”, não é a liga gino-centrista dos Eu; mas é um estar-junto das mulheres para um caminho de libertação, para uma Igreja que seja comunidade de mulheres e homens e para uma prática de reciprocidade.

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