quinta-feira, 25 de novembro de 2010

3. DA TEOLOGIA DA MULHER A TEOLOGIA FEMINISTA

A teologia feminista não é, propriamente falando, uma “teologia da mulher”. Nos anos do pós-guerra, como reação às abstrações de certa teologia neo-escolástica e para fazer frente a novos problemas emergentes, afirmaram-se as chamadas “teologias do genitivo”, como por exemplo — para relembrar as mais conhecidas e as melhor elaboradas - “a teologia das realidades terrestres” (Thils) e a “teologia do trabalho” (Chenu). Nas teologias do genitivo, o genitivo (objetivo) exprime o âmbito, o setor da realidade, o objeto, sobre o qual se aplica a reflexão teológica. As teologias do genitivo são teologias chamadas de “setoriais” e servem para dar mobilidade e concretude ao discurso teológico. Elas são de alguma forma, inevitáveis, mas pode-se abusar delas na medida em que os genitivos podem ser acriticamente multiplicados e nem sempre delimitam, sob o perfil metodológico, um adequado campo de pesquisa e de reflexão teológica.

3.1 A Teologia da Mulher

No contexto da vivaz proliferação das teologias do genitivo surgiu, nos anos Cinqüenta, também uma “teologia da mulher”. No ano mariano de 1954, em que se celebrava o centenário da definição do dogma da Imaculada Conceição (1954), um número especial da revista L’Agneau d’Or propôs “o esboço de uma teologia da mulher”, tema que foi retomado nos anos seguintes, por exemplo, na publicação da obra “Elements pour une théologie de la femme” (Rondet) e em “Pour une théologie de la féminité” (Henry). A teologia feminista é decididamente crítica com relação à “teologia da mulher” por causa da sua unilateralidade e de seu androcentrismo (pensamento centrado em sí própria ou preocupada consigo mesma); com efeito, ela foi elaborada por teólogos (e, além do mais, “clérigos”), que não elaboravam uma correspondente “teologia do homem “, ou “teologia da masculinidade”, além disto, também por força de sua própria origem utilizavam acriticamente representações e esquemas mentais derivados da dominante cultura patriarcal. Karl Barth, foi mais correto, sob o perfil metodológico, quando dedicou uma seção da sua Kirchliche Dogmatik (no vol. III/4, editado em 1951) a uma “antropologia dos sexos”, onde enfrentava o tema antropológico de homem e da mulher, ainda que sua exposição, do ponto de vista do conteúdo, não estivesse isenta de esquemas mentais derivados também da cultura patriarcal.

3.2 A Teologia Feminista

Se quisermos utilizar a categoria de “teologia do genitivo” para dar uma primeira definição da teologia feminista, será preciso dizer que ela é, ao contrário da teologia da mulher, uma teologia do genitivo subjetivo, isto é, uma teologia de mulheres é feita pelas mulheres: “Pela primeira vez, concretamente, as mulheres se tornaram sujeito da própria experiência de fé, da sua formulação e da relativa reflexão, e por isso, sujeito do fazer teologia”, e, somente na dependência deste novo fato cultural e eclesial, a teologia feminista é também uma teologia do genitivo objetivo: mulheres cristãs refletem sobre sua experiência humana e cristã, e experimentam criticamente sua experiência. Desse modo a teologia feminista introduz no círculo hermenêutico — o círculo que liga a experiência do passado fixada nos textos da Bíblia e da tradição à experiência atual da mulher — a outra metade da humanidade e da Igreja, enriquecendo a experiência de fé, a sua formulação e as suas expressões. A teologia feminista é a teologia de mulheres cristãs que tem a coragem de “fazer viagem rumo à liberdade”; ela não quer ser unilateral, mas reagir com eficácia à unilateralidade da teologia dominante e prática eclesial, e se apresenta como uma contribuição “à dimensão incompleta da teologia”, em vista de uma autêntica “teologia da integralidade”.

3.3 O Neo-feminismo

A teologia feminista se constitui e se afirma num confronto crítico com as instâncias do feminismo moderno. Na história do feminismo — que nasce semanticamente não só como termo, mas também como movimento diversamente organizado na primeira metade do século XIX, na França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e se difunde nos outros países do Ocidente — é possível identificar dois estágios:
- o estágio dos movimentos pela emancipação da mulher (até o início dos anos Sessenta), representavam as várias organizações feministas empenhadas nas lutas pela igualdade dos direitos civis;
- e um estágio  posterior ao primeiro (a partir dos anos Sessenta), em que o feminismo, primeiro nos Estados Unidos e depois no resto da Europa, assumiu a forma de movimentos de “libertação da mulher” (neo-feminismo), que impulsionaram as lutas da teologia feminista, para além da Igualdade. A consciência da mulher experimenta uma profunda transformação e, agora, percebe que lhe é atribuído um papel e um lugar, num mundo que permanece mundo do homem; assim sendo, questiona este mundo masculino e os seus modelos antropocêntricos e as suas estruturas patriarcais.
O neo-feminismo vai além da emancipação e da igualdade, que contudo continuam sendo um pressuposto necessário de um vasto processo, que é ao mesmo tempo psicológico, socioeconômico e cultural:
a) Ele comporta uma libertação fundamental e radical das mulheres, que reivindicam a autonomia como seres humanos: trata-se, pois, de um processo (sócio) psicológico;
b) além disso, ele pressupõe uma lúcida análise dos fatores sociais e econômicos, que estiveram em jogo na opressão das mulheres: trata-se também de um processo social e econômico;
c) por fim, ele se revolta contra uma cultura unilateralmente masculina, asssumindo assim também a forma de contra-cultura.
A teologia feminista é expressão de mulheres, ao mesmo tempo feministas e cristãs, que compartilham com outras irmãs - num relacionamento ideal e militante que responde pelo nome de irmandade. A nova consciência da mulher e a militância para a emancipação e a libertação da mulher, está empenhada em suas comunidades a uma reflexão de fé. Trata-se, então, de uma forma de “teologia contextualizada”, em que a reflexão teológica não acontece de forma predominantemente acadêmica, mas surge depois, a partir de um determinado contexto de compromisso e de militância. Segue-se que a teologia feminista não tem a sistematicidade da teologia acadêmica; é uma teologia feita por fragmentos, e não uma teologia sistemática e completa; é uma teologia mais narrativa do que argumentativa, na medida em que não parte de conceitos abstratos, mas do relato participado e compartilhado na escuta, de histórias de experiências, para chegar, a partir daí, à formulação da experiência de Deus. Contudo, ainda que na fragmentariada, a teologia feminista alcançou tal grau de elaboração que se constituiu num relevante fenômeno teológico.
A teologia feminista assume a mesma estrutura das teologias da libertação, que se auto-compreendem como “segundo ato”. Uma autêntica teologia cristã é sempre “segundo ato”: a inteligência teológica pressupõe a fé, uma experiência de fé, uma espiritualidade como primeiro ato. “Uma teologia que não se situe no contexto de uma experiência de fé corre o risco de converter-se numa espécie de metafísica religiosa, numa roda que gira no ar sem mover o carro” (Gustavo Gutiérrez).
Por isso: a experiência de fé vem em primeiro ato e a teologia vem em segundo ato. O ato primeiro é pressuposto de uma experiência de fé contextualizada por um compromisso exigente (teologia contextualizada); da opção pelos pobres (na teologia latino-americana de libertação), da luta contra o racismo da sociedade branca (na teologia negra da libertação); é uma militância nas lutas de libertação (teologia militante); é uma práxis (termo mais adequado do que prática ou ação) transformadora de torcidas relações de dependência e de dominação. Também a teologia feminista se articula como “segundo ato”, como reflexão que pressupõe como “primeiro ato” um compromisso e uma militância nos movimentos de emancipação e de libertação da mulher. É uma teologia que opera numa constante correlação de ação e reflexão. Letty Russel fala de “teologia da libertação em perspectiva feminista”; Elisabeth Schtissler Florenza apresenta a teologia feminista como “teologia crítica de libertação” para sublinhar, ao mesmo tempo, a função teórica de crítica frente à cultura e à práxis dominante na Igreja e na sociedade, mas também, frente à própria teologia, e conjuntamente o empenho prático, a militância nos movimentos de libertação da mulher.
A teologia feminista não é, pois, uma nova versão, revista e corrigida, da teologia da mulher, porque tem sua origem numa situação cultural e eclesial diferente e trabalha com uma metodologia baseada numa nova relação entre teoria e prática. Também não se pode falar de uma “teologia feminina”, expressão que aliás não é usada, e que, se fosse usada, serviria apenas para perpetuar estereótipos, que a teologia feminista procura pelo contrário demolir: uma “teologia feminina” exigiria como contrapartida a elaboração de uma “teologia masculina”, ao passo que a teologia feminista se auto-compreende como uma contribuição crítica para uma “teologia da integralidade”. Algumas teólogas e teólogos católicos falam também de uma “teologia ao feminino”, entendendo com esta expressão uma reflexão teológica elaborada por parte de mulheres e/ou a partir de mulheres, na medida em que levanta o tema da “questão feminina”: trata-se de uma abordagem ainda ligada à abordagem da teologia da mulher, e à qual falta o caráter da militância como “primeiro ato”, que é um dos elementos básicos da teologia da libertação em geral, e da teologia feminista em especial.
O termo teologia feminista é comparável, semanticamente, àquele da teologia negra: como a “teologia negra” é uma teologia da libertação dos negros, assim a teologia feminista é uma teologia da libertação das mulheres, uma reflexão elaborada e praticada por mulheres que militam no movimento de libertação da mulher, e, como tal, se inscreve no vasto e variado espaço das teologias da libertação.

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